segunda-feira, 6 de abril de 2015

"Reflexões sobre a ideia de 'Normalidade'", por Carmem Toledo


A palavra "normal" pode originar mais discussões do que podemos imaginar, apesar de ser utilizada, muito frequentemente, por pessoas dos mais variados níveis e origens. Porém, teríamos nós consciência do que ela realmente significa? Quais são os critérios para que se afirme que alguém ou algo é "normal" ou "anormal"? Vejamos em que ocasiões este vocábulo é usado.
Não é difícil escutarmos frases como "Esta atitude é normal nesta idade", "É normal que isto ocorra entre crianças", "João nasceu perfeito: ele é normal", "Uma pessoa normal não faria isso", entre muitas outras que proferimos sem nos darmos conta do que estamos realmente dizendo.
Quando afirmamos que "João é normal", o que fazemos é uma comparação entre o sujeito e outras crianças, que possuem atitudes e características semelhantes entre si. Aqueles que não possuem qualidades correspondentes são ditos "diferentes" e, portanto, não seriam "normais", segundo os critérios estabelecidos - que, na verdade, nada mais são que as bases dos chamados "pré-conceitos".

Assim, é comum que pessoas leigas digam: "Pedro é autista, mas seu irmão, João, é normal", tendo-se em conta que o critério de normalidade, neste caso, é a comparação do neurodesenvolvimento. Isso faz com que sejam considerados "normais" todos os indivíduos que possuem o mesmo desenvolvimento aparente em relação à idade que possuem e contexto em que vivem. Igualmente, todos aqueles que possuírem características físicas diferentes da maioria, responderem de maneira diferente aos estímulos externos, ou possuírem habilidades menores ou maiores que o grupo a que pertencem, são estigmatizados como "problemáticos", "diferentes", "anormais".
Assim, nasce a noção corrente de "normal", conforme os (pre)conceitos estabelecidos pela sociedade.

Entretanto, convém sempre questionar conceitos impostos por tradições sociais, já que a tendência é reproduzirmos automaticamente certos juízos e comportamentos, perpetuando costumes nocivos sem que nos demos conta. Ressalto que este é um alerta para todos, inclusive profissionais especialistas no assunto, pois todos nós temos a tendência de repetir o que aprendemos, esquecendo-nos de refletir sobre nossas falas e atitudes. Por isso, fala-se tão acertadamente sobre questionamentos e derrubadas de crenças atualmente. 

Mas, felizmente, sempre houve quem questionasse as "convicções" sociais, contribuindo para a evolução ética em vários contextos. O filósofo Baruch de Espinosa foi um desses questionadores no passado e sua obra permanece sendo estudada. No Apêndice à Ética I, escreveu algo que convém citarmos aqui:
"Depois de se terem persuadido de que tudo o que acontece acontece em vista deles, os homens foram levados a julgar que o principal, fosse no que fosse, é o que têm por mais útil e a darem apreço como mais prestante ao que mais agradavelmente os afetasse. Daí o serem obrigados a formar noções com que explicassem a natureza das coisas, tais como Bem, Mal, Ordem, Confusão, Quente, Frio, Beleza e Lealdade; e porque se reputam livres, isso deu origem a noções tais como Louvor e Vitupério, Pecado e Mérito.
(...) É que quem não conhece a natureza das coisas nada pode afirmar a respeito delas e somente as imagina e toma a imaginação pelo entendimento, e por isso acredita firmemente que existe Ordem
¹ nas coisas, ignorante como é da natureza dos seres e da de si mesmo.
(...) E como as coisas que facilmente podem ser imaginadas são mais agradáveis do que as outras, os homens preferem a ordem à confusão, como se a ordem, salvo em relação à nossa imaginação, fosse algo existente na Natureza." (Espinosa, Apêndice à Ética I, p. 127)

Espinosa criticava os valores, que nada mais são que critérios de julgamento. A partir deles, a maioria das pessoas julga o que é "Bem" e o que é "Mal". Porém, segundo o pensador, as coisas não são boas ou más em si, pois "Bem" e "Mal" são entes de imaginação, ou seja, ideias abstratas que, portanto, não existem na realidade. Sendo assim, as coisas são o que são, e não o que lhes atribuímos segundo nossos preconceitos. O mesmo ocorre com todos os outros valores: "Normal" é um deles.

De acordo com Espinosa, a Ética deve ser tomada como uma forma de conhecimento que exige a investigação² da natureza, visando à compreensão dos atos humanos e das várias formas de existência dos homens, que são singulares e, portanto, não podem ser comparados a modelos pré-concebidos.
Os estigmas nascidos a partir dos critérios de normalidade são, na realidade, consequências de um trabalho moral, em que tudo aquilo que é exigido é posto como algo universal, ideal, ou seja, um "dever-ser". A ideia de Humanidade se encaixa nesta idealização, uma vez que é compreendida como um conjunto de atributos concernentes à natureza humana. A partir disso, define-se o que é "típico" e "atípico".
Porém, se tomarmos como referência a Ética Espinosana, o que deve ser considerado é a singularidade, cada homem em particular e suas atitudes, que se devem ao desdobramento de sua essência. Isso faz com que ninguém possa ser submetido a qualquer julgamento embasado em um ideal.

Agora, voltemos a nosso exemplo, dado no início deste artigo:

Se alguém afirma que uma pessoa é "normal" e outra não o é, o que está sendo feito?
Em relação às pessoas com deficiências físicas e intelectuais, um julgamento parcial (e equivocado) fundado em ideais que interessam à sociedade: produção, lucro, vaidade etc.
Quando o alvo não é a deficiência, mas qualquer comportamento que não seja comum aos demais do mesmo grupo, como uma criança ou jovem que não segue os padrões comportamentais e intelectuais de sua idade, por exemplo, o que se tem em vista são os padrões de consumo e o perigo da existência de questionamentos políticos ou sociais futuros, afinal, quando se tem uma média, é mais fácil deduzir seus pensamentos e atitudes e, assim, controlá-la de várias maneiras (sobre este tema, recomendo a leitura da importante obra "Discurso da Servidão Voluntária" , do filósofo humanista Étienne De La Boétie, que sustentava que os tiranos dominam através da ignorância do vulgo).

Finalmente, após estas reflexões, podemos perguntar novamente:
O que é "normal"? Quais são nossos critérios para decidir suas definições? Somos justos ou corretos, quando afirmamos que alguém não é "normal"?

Cabe a cada um refletir e decidir se possui ideias próprias ou impostas pela sociedade. Afinal, somos singulares, e não cópias de um mesmo modelo. 

Por isso, imitando Espinosa, o que devemos fazer é:
"(...) não ridicularizar as ações dos homens, não as lamentar, não as detestar, mas adquirir delas verdadeiro conhecimento." (Espinosa, Tratado Político, I, §4, p. 314)

A negação à imposição da normatividade implica juízo de valor quanto a ideias. Qualquer conceito que pressuponha a marginalização de grupos deve ser questionado e combatido. Esta é a luta empreendida pelo movimento da Diversidade.
Acrescento um comentário interessante sobre Espinosa, um dos mais importantes pensadores modernos: O filósofo racionalista foi perseguido pelas autoridades político-religiosas (pois era de uma família de judeus e criticava fortemente a teologia política, afirmando que a verdadeira virtude é alcançada através da razão) e também pelos próprios filósofos de seu tempo, como Leibniz e Malebranche, que discordavam de seus pensamentos. 

Carmem Toledo
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Notas:

¹ Quando o filósofo usa a palavra “Ordem”, refere-se à ordenação afirmada por Descartes, que acreditava que tudo possuía ordenação geométrica.
² Quando se realiza esta investigação, deve-se partir da totalidade das coisas - e isto é um antídoto contra o preconceito.



Bibliografia:

1. ESPINOSA, Baruch de. Ética I, Trad. de Joaquim de Carvalho in Os Pensadores, São Paulo, Abril, 1973

2. ___________________. Tratado Político, Trad. de Manuel de Castro in Os Pensadores, São Paulo, Abril, 1973









Artigo originalmente publicado em http://carmemtoledo.blogspot.com (02/04/2008).


Autoria

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