sábado, 22 de maio de 2021

Uma pessoa com Dupla Excepcionalidade


    Conforme prometi, elaborei esta postagem contando alguns detalhes sobre minha Dupla Excepcionalidade, visando ao esclarecimento de alguns pontos sobre o tema e, mais especificamente, sobre características que estão presentes nas condições que envolvem Altas Habilidades/Superdotação e Autismo*, como é meu caso. 
    Ressalto, para começar, que deve-se evitar comparações entre os indivíduos que possuem o mesmo laudo, ainda que a base para o fechamento do diagnóstico seja a mesma, pois são condições que apresentam diferentes nuances em cada pessoa; nenhum superdotado é igual ao outro e nenhum autista é igual ao outro. Por mais que existam semelhanças, também há diferenças grandes e julgar o diagnóstico (bem como o prognóstico) de alguém a partir de uma observação superficial conduz a erros graves, inevitavelmente. 
    Sobre isso, também é importante ressaltar, logo de início, que a identificação do Autismo e das Altas Habilidades/Superdotação cabe a profissionais habilitados para isso, que dominem os assuntos relacionados à neurodiversidade: neuropsicólogos, neurologistas e psiquiatras que tenham estudos aprofundados e uma boa experiência em autismo, altas habilidades/superdotação e outras questões do neurodesenvolvimento. A análise desses profissionais deve ser cuidadosa e se basear em entrevistas com o indivíduo e com alguém que tenha acompanhado seu desenvolvimento (de preferência, desde o nascimento), uma minuciosa observação clínica do paciente e testes psicométricos de avaliação da inteligência, velocidade de processamento, função executiva, atenção, memória, linguagem, testes específicos, como a Escala de Avaliação de Traços Autísticos (ATA), além de usar como referência o DSM - V* (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - 5ª edição). Os testes somente podem ser aplicados por neuropsicólogos, pois estes estudaram tais assuntos e, portanto, saberão observar a pessoa enquanto esta os resolve, medindo o tempo e analisando até as estratégias utilizadas. 
    Portanto, não há validade alguma em fazer um teste na internet e tirar conclusões a partir disso, assim como não é nada confiável tirar dúvidas nas redes sociais. Da mesma forma, é antiético (e extremamente deselegante) invalidar o laudo de uma pessoa com base em preconceitos, principalmente se você mal a conhece - mesmo que você seja profissional da área, o que torna ainda mais grave e antiético este procedimento, uma vez que você deve saber tudo que está envolvido no processo diagnóstico. Infelizmente, observamos muitos "especialistas da internet" se intrometendo em postagens alheias (ou até mesmo nas mensagens privadas de várias pessoas) e pior: chegando a fazer lives que prestam um desserviço tremendo, sem fundamento científico, perpetuando, inclusive, mitos e ideias capacitistas. 
    Aliás, aproveito para repetir mais uma vez o que sempre escrevo aqui no blog: Não pesquise no Google! A internet pode ser muito boa para pesquisas, desde que você já tenha alguma base sobre o tema, para que então possa discriminar informações certas e erradas, o que o deixa apto a saber exatamente quais são as fontes confiáveis. Infelizmente, há muitas informações equivocadas e desatualizadas que circulam na web. 
    No blog da Voz Neurodiversa, há páginas onde são disponibilizadas algumas fontes confiáveis para que o leitor se informe corretamente sobre os assuntos aqui abordados e também possa tirar dúvidas ou até mesmo buscar ajuda. No final desta postagem, estão os links com tais informações.
    Encerro por aqui estas observações - longas, porém necessárias - e convido à leitura do artigo.

    Primeiro, vamos à definição de Altas Habilidades/Superdotação:

    De acordo com o psicólogo Joseph Renzulli, estudioso da área, a superdotação se sustenta sobre uma tríade composta pelos seguintes traços:

1. Habilidade acima da média em alguma área do conhecimento (em comparação aos pares da mesma idade e origem sociocultural);
2. Comprometimento com a tarefa (motivação, disposição, perseverança e concentração);
3. Criatividade (inovar, encontrar novos significados, adaptar ideias).

    Esta teoria foi adotada pelo Conselho Mundial para Crianças Superdotadas e Talentosas, pelo Ministério da Educação - Governo Federal e pelo Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD).
Renzulli destaca que estes traços nem sempre são desenvolvidos igualmente, por isso, deve haver a compreensão sobre a condição e o estímulo necessário para que todo potencial se desenvolva. Da mesma forma, estes traços devem ser trabalhados também nas pessoas que não são superdotadas, sobretudo quando são detectadas habilidades acima da média em alguma área. 
    Howard Gardner, psicólogo cognitivo que se dedica ao tema, introduziu na área educacional a Teoria das Inteligências Múltiplas, que consiste em sete áreas: lógico-matemática (cálculos e deduções), linguística (uso da fala e da escrita, capacidade de aprender idiomas), espacial, físico-cinestésica, interpessoal (capacidade de se relacionar bem com os demais), intrapessoal (autoconhecimento) e musical. Depois, foram acrescentadas: natural (a habilidade de conhecimento sobre a natureza) e existencial (reflexões sobre a vida, questões filosóficas). 
    Isso quer dizer que nem sempre o alto-habilidoso terá um Q. I. (Quociente Intelectual) acima da média, pois existem habilidades que não são avaliadas nos testes: este é o caso das artes, dos esportes e da capacidade de liderança. Por exemplo: Alguém pode ser um exímio pianista desde criança, mas seus testes de inteligência podem estar dentro da média. Isto significa que se trata de um alto-habilidoso musical. Este talento deve ser trabalhado e ele deve receber todo amparo necessário, mesmo não tendo um Q. I. muito elevado, para que se desenvolva nesta área e seu potencial seja aproveitado.
    Outra questão importante é que este amparo é assegurado por lei. Trata-se da Lei 12.796, de 4 de abril de 2013, referente à educação especial (Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9394/96 com modificações no Art. 58 e seguintes) e da Lei 13.234/2015, que dispõe sobre a identificação, o cadastramento e o atendimento, na educação básica e na educação superior, de alunos com altas habilidades ou superdotação. 

    De acordo com a cartilha "Saberes e Práticas da Inclusão" do Ministério da Educação (Quadro 5 – p.44), as características das pessoas com Altas Habilidades/Superdotação são as seguintes (não necessariamente todas ao mesmo tempo, no mesmo indivíduo):

1 – Aprende fácil e rapidamente.
2 – É original, imaginativo, criativo, não convencional.
3 – Está sempre bem informado, inclusive em áreas não comuns.
4 – Pensa de forma incomum para resolver problemas.
5 – É persistente, independente, autodirecionado (faz coisa sem que seja mandado).
6 – Persuasivo, é capaz de influenciar os outros.
7 – Mostra senso comum e pode não tolerar tolices.
8 – Inquisitivo e cético, está sempre curioso sobre o como e o porquê das coisas.
9 - Adapta-se com bastante rapidez a novas situações e a novos ambientes.
10 - É esperto ao fazer coisas com materiais comuns.
11 - Tem muitas habilidades nas artes (música, dança, desenho etc.).
12 – Entende a importância da natureza (tempo, Lua, Sol, estrelas, solo etc.).
13 – Tem vocabulário excepcional, é verbalmente fluente.
14 – Aprende facilmente novas línguas.
15 - Trabalhador independente.
16 – Tem bom julgamento, é lógico.
17 – É flexível e aberto.
18 – Versátil, tem múltiplos interesses, alguns deles acima da idade cronológica.
19 - Mostra sacadas e percepções incomuns.
20 - Demonstra alto nível de sensibilidade e empatia com os outros.
21 - Apresenta excelente senso de humor.
22 – Resiste à rotina e à repetição.
23 – Expressa ideias e reações, frequentemente de forma argumentativa.
24 - É sensível à verdade e à honra.

    No caso de alto-habilidosos cognitivos:

1 - Vocabulário avançado
2 - Perfeccionistas
3 - Críticos
4 - Contestadores
5 - Não gostam de rotina
6 - Grande interesse por temas abordados por adultos
7 - Facilidade de expressão
8 - Desafiam professor e colegas
9 - Conseguem monopolizar atenção de professor e colegas
10 - Preferem geralmente trabalhar de forma individual

    Estas características devem ser percebidas precocemente pelos profissionais que acompanham o desenvolvimento da criança, como professores, psicopedagogos, psicólogos e mesmo os pais ou cuidadores devem estar atentos para que seja oferecido o atendimento necessário desde cedo.
    Quanto à superdotação intelectual constatada por meio do valor do Quociente Intelectual, como escrevi no texto introdutório, somente um neuropsicólogo pode aplicar testes psicométricos para a avaliação da inteligência, para então concluir se uma pessoa tem Q. I. elevado ou não. O teste usado em crianças e adolescentes é o WISC (Escala Wechsler de avaliação de inteligência de 6 a 16 anos). No caso de adultos, usa-se o WAIS ou o WASI (Escala Wechsler Abreviada de avaliação de inteligência de 6 a 89 anos). É importante informar que os pontos resultantes, isoladamente, não medem a inteligência; o que é levado em consideração são os percentis obtidos, que são dados de acordo com uma padronização com base em comparações feitas entre pessoas da mesma faixa etária e nível sociocultural. Sendo assim, há um valor estatístico envolvido no resultado.
    No meu caso, não houve uma identificação precoce, ou seja, não recebi o atendimento necessário durante minha vida escolar. Sempre me destaquei academicamente, tendo sido agraciada por prêmios devido a meu desempenho durante o Ensino Médio e Técnico. Desde criança, tinha um interesse acentuado por Língua Portuguesa e Artes, destacando-me nestas áreas. Naquela época, algumas pessoas atuantes na área da Educação percebiam e diziam que minha inteligência estava acima da média. Entretanto, apenas fui corretamente identificada na fase adulta, depois de testes psicométricos devidamente aplicados por uma neuropsicóloga (em 2021, com quase 36 anos). O instrumento utilizado foi o WASI, que avaliou minhas funções intelectuais, chegando aos seguintes resultados:

Quociente de Inteligência Total: 136, percentil 99. Isto significa que faço parte de 1% da população testada.
Quociente Verbal (mede a inteligência verbal, a habilidade de expressão, a capacidade de compreender questões complexas e conhecimentos gerais): 152, percentil > 99,9. Este resultado representa menos que 0,1% da população testada.
Quociente Executivo (mede a inteligência não-verbal, a capacidade de resolver problemas e o raciocínio lógico): 117, percentil 87, equivalente a 13% da população testada.

    Como vocês podem ver, há uma discrepância muito grande entre o Q. I. Executivo em comparação com os demais valores (em relação ao Q. I. Total, 19 pontos, o que equivale a 12%; quando olhamos para o Q. I. Verbal, a diferença é ainda maior, de 35 pontos ou mais que 12,9%). Há estudos que relacionam tais discrepâncias a distúrbios de aprendizagem, entretanto, muitos pesquisadores afirmam que este fator não deve ser usado para diagnóstico clínico, e sim para a avaliação de déficits (este artigo da Universidade Católica de Pelotas menciona alguns desses estudos: http://www.scielo.br/pdf/pusf/v12n2/v12n2a16.pdf).
    Além deste, foram aplicados os seguintes testes: Dígitos, HVLT (Hopkins Verbal Learning Test, que avalia a memória episódica verbal), Figura Complexa de Rey (percepção e memória visual), Códigos, Trail Making Test A e B (atenção visual e troca de tarefas), Stroop (teste de cores e palavras que avalia a atenção seletiva), FDT (velocidade de processamento cognitivo, capacidade de foco e de lidar com interferências), FAS (fluência verbal fonêmica), Animais, Semelhanças, Cubos, Boston Naming Test (capacidade de linguagem). 
    Entretanto, como também fui encaminhada para avaliação com suspeita de autismo, foi aplicado o teste específico voltado para esta condição: Escala de Avaliação de Traços Autísticos (ATA), além de entrevistas com minha mãe e comigo e a Escala de Avaliação de Humor (EADS-21), para detectar outras possíveis comorbidades, como depressão, ansiedade e estresse. No questionário sobre traços autísticos, como meu índice neurodiverso superou a pontuação neurotípica, confirmou-se a condição, o que foi corroborado pelos depoimentos acerca de meu histórico. Este caso de Dupla Excepcionalidade é complexo, uma vez que há alguns pontos importantes que confundem os profissionais (e também os pacientes), dificultando o diagnóstico correto:

- O autismo se manifesta de maneira diferente em mulheres;
- Mulheres tendem a ser mais sociáveis, mais criativas e a usar um recurso chamado "masking", que são máscaras sociais usadas para atender as expectativas da sociedade (sobre isto, recomendo este artigo: https://progene.ib.usp.br/autismo-em-mulheres-os-custos-da-camuflagem-do-autismo/);
- Várias características do autismo (sobretudo, nível I) também estão presentes na superdotação (hipersensibilidade, dedicação extrema a determinados temas, vocabulário avançado para a idade);
- Os hiperfocos do autismo auxiliam muito na aquisição de conhecimentos específicos que podem alterar o funcionamento cognitivo em certas áreas (como a verbal, por exemplo).

    O que foi determinante para a conclusão de que, além de superdotada, eu sou autista?
Sobretudo, os relatos sobre minha história, desde a gestação, além de certas dificuldades que são patentes, apesar de minhas habilidades conseguirem, muitas vezes, mascará-las. Primeiramente, é importante citar os critérios diagnósticos divulgados pelo DSM - V* (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - 5ª edição - veja mais explicações nesta postagem: http://vozneurodiversa.blogspot.com/2015/02/dsm-v-transtorno-do-espectro-do-autismo.html):

1. Déficits clinicamente significativos e persistentes na comunicação social e nas interações sociais, manifestadas de todas as maneiras seguintes:
a. Déficits expressivos na comunicação não verbal e verbal usadas para interação social;
b. Falta de reciprocidade social;
c. Incapacidade para desenvolver e manter relacionamentos de amizade apropriados para o estágio de desenvolvimento.

2. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades, manifestados por pelo menos duas das maneiras abaixo:
a. Comportamentos motores ou verbais estereotipados, ou comportamentos sensoriais incomuns;
b. Excessiva adesão/aderência a rotinas e padrões ritualizados de comportamento;
c. Interesses restritos, fixos e intensos.

3. Os sintomas devem estar presentes no início da infância, mas podem não se manifestar completamente até que as demandas sociais excedam o limite de suas capacidades.

    Destaco que não se pode tirar conclusões apenas lendo os critérios do manual. Quem deve fazer isso é, repito, um profissional da área, que levará muitos detalhes em consideração. Por exemplo, alguém que me conheça superficialmente pode ter a impressão de que não possuo nenhum problema na comunicação verbal e não verbal e que interajo bem socialmente, afinal, falo bem, domino a língua portuguesa desde criança, converso e até sou artista multimídia - desenho, escrevo, faço imitações e cheguei a frequentar vários cursos de atuação e de dança! No entanto, em algum momento, aparecerão meus déficits, como a dificuldade em entender ironias, a demora em perceber paqueras, a insistência em determinados assuntos, a dificuldade para fazer e manter amizades, uma dificuldade ainda maior em iniciar e terminar relacionamentos, respostas que, às vezes, são inadequadas (como, até pouquíssimo tempo atrás, quando alguém dizia: "Que cabelo lindo! O que você faz?" e eu respondia: "Eu lavo.")... Também tenho comportamentos repetitivos, como stims (estereotipias que, no meu caso, são: mexer nas mãos com frequência, andar em círculos e cutucar a pele), hiperfocos (interesses restritos e intensos, como, para citar apenas alguns que já tive: durante a infância - Logotipos, o Caco dos Muppet Babies, Punky, TV Cultura, desenho "A Pedra dos Sonhos", "As Aventuras de Tintin", Língua Portuguesa, Mamonas Assassinas; durante a adolescência - Sai de Baixo, Marisa Orth, Banda Vexame, Arte de Protesto durante a Ditadura Militar, Teatro; durante a fase adulta - Jean-Jacques Rousseau, Sophia Loren, Dança Cigana, Neurodiversidade, Dalida). 
    Tais interesses variam de duração, sendo que alguns se perdem, enquanto outros podem retornar ou durar a vida toda. Atualmente, meu hiperfoco é a cantora egípcia Dalida. Quando estava na fase do filósofo Jean-Jacques Rousseau, cheguei a fazer parte do Grupo de Estudos Rousseau no Departamento de Filosofia da FFLCH - USP (onde sou formada) e quase cheguei a prestar mestrado em Ética e Filosofia Política. Também criei, na época, um blog dedicado a este pensador: http://ocaminhantesolitario.blogspot.com, que ainda mantenho, mas demoro a atualizar por conta da dificuldade em me dedicar a este assunto atualmente (pois este hiperfoco passou). De qualquer forma, em respeito a quem o acompanha, conservo-o ativo e pretendo criar alguma postagem para atualizá-lo. Outro hiperfoco que gerou um blog foi Sophia Loren. Inspirada na atriz, criei o http://sophiaierioggidomani.blogspot.com. Também pretendo atualizá-lo em breve, apesar de não estar mais tão dedicada ao tema. O hiperfoco em Neurodiversidade me levou a criar o projeto Voz Neurodiversa (http://vozneurodiversa.blogspot.com, que anteriormente se chamava Super Specialis) e quando estava elaborando o blog, cheguei a me esquecer de comer, de ir ao banheiro e de dormir. 
    Quanto ao hiperfoco em Língua Portuguesa, que permaneceu, mais ou menos, dos 10 aos 12 anos de idade, foi uma fonte enorme de conhecimento para que eu soubesse manejar o idioma, principalmente na escrita e na compreensão de muitos conceitos, como as figuras de linguagem (dificuldade marcante nos autistas). Para que o leitor tenha uma ideia, eu estudava o conteúdo do livro didático adotado pela escola, antes que ele fosse ensinado. No último dia de aula da 4ª série, uma professora até me presenteou com uma edição para professores de um livro de Língua Portuguesa e dois anos depois, aos 12 anos, li toda a Gramática que seria utilizada até a 8ª série. Não perdia o programa "Nossa Língua Portuguesa", dediquei um caderno para anotações sobre esta produção da TV Cultura e até escrevi uma carta ao professor Pasquale Cipro Neto, depois de descobrir seu endereço na lista telefônica. Graças a este interesse intenso, aprendi a entender piadas e metáforas - habilidade que foi muito reforçada por outros hiperfocos que vieram também neste período: Mamonas Assassinas, Sai de Baixo e Arte de Protesto durante a Ditadura Militar. Com as músicas da banda e o programa humorístico, aprendi e memorizei muitas expressões e frases de duplo sentido (eu tinha uma lista com as frases da Magda, por exemplo, que, apesar de "erradas", faziam sentido para mim e isso me divertia muito). Sobre a Arte de Protesto, passava os fins de semana ouvindo os LP's de Chico Buarque que pertenciam a meus pais e analisando as letras, além de adorar reler um livro de minha mãe que contém vários textos de Millôr Fernandes publicados no jornal O Pasquim. Empolgada com isso, passei por uma fase na adolescência em que exagerava tanto nas metáforas, que uma professora chegou a chamar minha atenção em uma redação. Anos mais tarde, já na universidade, cursei uma disciplina sobre a Arte de Protesto no Departamento de História.
    Sendo assim, à primeira vista, posso passar a impressão de entender "naturalmente" certas figuras de linguagem... Mas, na verdade, neste caso, reproduzo muitas coisas que foram absorvidas pela repetição e construo a interpretação sobre as expressões em geral. Com este aprendizado, adquiri a habilidade de manipular as palavras de acordo com seus múltiplos significados e, quando preciso, abro um "dicionário mental", que me mostra todas as definições conhecidas de certos vocábulos, para que eu escolha o melhor sentido, de acordo com o contexto. Provavelmente, meu Quociente Intelectual tenha uma função importante nesta questão, incluindo meu Quociente Verbal, mas também me pergunto se este último talvez tenha sido elevado por causa de minha dedicação extrema. Mesmo assim, falho muitas vezes em entender sarcasmo - principalmente durante conversas informais (sobretudo, faladas) - e demoro a entender certos códigos usados em flertes, como já escrevi mais acima. Também demoro a compreender e aprender novas gírias.
    Como disse anteriormente, meu histórico foi crucial para que se chegasse a uma conclusão, pois o autismo é um Transtorno do Neurodesenvolvimento e, como tal, deve estar presente nas fases iniciais. Neste ponto, o depoimento que minha mãe levou ao consultório foi essencial. Alguns detalhes sobre isso já foram publicados no blog: http://vozneurodiversa.blogspot.com/2021/04/a-noticia-da-dupla-excepcionalidade.html.
      Por último, houve a confirmação do laudo por parte de um psiquiatra especialista em autismo e altas habilidades/superdotação. 
    Atualmente, recebo acompanhamento psicológico - mais especificamente, Terapia Cognitivo-Comportamental - e trato as comorbidades (Transtorno Misto Ansioso e Depressivo) com medicamentos prescritos pelo psiquiatra. Este é o tratamento ideal para meu caso, sendo que as necessidades de cada um variam de acordo com suas características (portanto, o que é bom para mim pode não ser bom para outros e vice-versa). Tanto a primeira entrevista como o encaminhamento para as avaliações e para a terapia foram feitos através da Associação de Pais Inspirare (disponibilizo as informações de contato no fim da postagem).
    Enfim, estes são apenas alguns detalhes sobre mim. Não coloquei tudo aqui, mas é possível ter uma ideia sobre o que é realmente relevante para a compreensão acerca de minha condição - a Dupla Excepcionalidade. A complexidade deste tema é muito grande, portanto, faz-se urgente o incentivo a um maior número de pesquisas a respeito disso e que os profissionais se dediquem ao permanente estudo e atualização. São duas condições que apresentam muitas nuances em suas manifestações e, como sabemos, o cérebro humano possui características múltiplas e de difícil compreensão. 
    Faço questão de repetir que o autismo, bem como a superdotação, apresentam-se de forma diferente em cada indivíduo, sendo assim, não cabem comparações como "Mas meu filho tem esta dificuldade e você não tem", "Se o Epaminondas, que também é autista, conseguiu ter sucesso e é bilionário, você consegue... É só se esforçar mais um pouco" ou "Tenho 157.868 alunos autistas e nenhum é como você", pois seu filho tem dificuldades que não tenho, da mesma forma que eu não tenho habilidades que seu filho tem; o bem-sucedido Epaminondas é bilionário, porque encontrou as oportunidades certas para isso e talvez, tenha alguma habilidade específica que eu não possuo e seus 157.868 alunos autistas também são diferentes entre si. Cabe somente aos profissionais da área, depois de análises profundas que lhes permitam conhecer o paciente e os testes corretos, discriminar as características e atribuir diagnósticos, bem como buscar as terapias apropriadas a cada indivíduo. Outro detalhe importante: Superdotação não é deficiência, nem "problema", muito menos "frescura", nem "ostentação" e tampouco "bênção de Deus": É uma condição estudada pela Ciência, com características próprias, legislação pertinente e que deve ser compreendida e respeitada. Se você acredita que tenha alguns traços destas condições (uma ou ambas), procure um profissional especializado que possa analisar o seu caso específico.
    Quando falamos em neurodiversidade, estamos tratando de realidades de fato diversas. São muitos plurais constituídos de indivíduos singulares.

Carmem Toledo
Responsável pelo projeto Voz Neurodiversa



* Observação: Como fui diagnosticada em 2021, quando o CID 10 ainda estava em vigência, foi-me atribuído o código F84.5 (Síndrome de Asperger). De acordo com o CID 11, meu diagnóstico é 6A02.0 – Transtorno do Espectro do Autismo sem deficiência intelectual (DI) e com comprometimento ausente da linguagem funcional.



Mais informações importantes podem ser encontradas nas seguintes postagens:

A Notícia da Dupla Excepcionalidade 
(com depoimento de minha mãe sobre o laudo, incluindo algumas características minhas desde a infância):

Derrubando mitos sobre Autismo, Altas Habilidades/Superdotação e outras condições: 

Recomendações de leitura sobre Altas Habilidades/Superdotação: 

Recomendações de leitura sobre Autismo: 

Legislação: 

Fontes de pesquisa confiáveis (sobre temas variados): 

Lista de profissionais especializados: 

Instituições e núcleos de apoio 
(para ter acesso à lista de seu Estado, selecione em um dos menus laterais: "Instituições por Estado"): 




Sites oficiais: 
(onde vocês podem buscar ajuda, pedir indicação de profissionais ou tirar dúvidas)

ConBraSD - Conselho Brasileiro para Superdotação (atuante em todo o Brasil): 
E-mail: conbrasd@conbrasd.org

APAHSD - Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação (São Paulo): 
E-mail: faleconosco@apahsd.org.br
(11) 5092-2759
(11) 2339-3351

Associação de Pais Inspirare (São Paulo - SP): 
Recomendo para orientação e encaminhamento a profissionais habilitados.
(11) 3522-4995 






Autoria

"Voz Neurodiversa" (vozneurodiversa.blogspot.com) é de autoria de Carmem Toledo. Está proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo aqui publicado, inclusive dos disponibilizados através de links aqui presentes. A mesma observação se estende a todos os blogs e páginas da autora ("Culturofagia", "O Caminhante Solitário", "Sophia... Ieri, Oggi, Domani") e toda e qualquer criação, seja em forma de texto ou ilustração, por ela assinada.